O homem e sua sombra

Affonso Romano de Sant’anna, Poeta
1
Era um homem com sombra de cachorro
que sonhava ter sombra de cavalo
mas era um homem com sombra de cachorro
e isto de algum modo o incomodava.
Por isto aprisionou-a num canil
e altas horas da noite
enquanto a sombra lhe ladrava
sua alma em pelo galopava
3
Um homem deixou de alimentar
a sombra que transportava.
Alegou razões de economia.
Afinal para quê
de sobejo levar
algo que o duplicava?
Sem sombra, pensou:
melhor carregaria
o que nele carregava.
Equivocou-se. Definhou.
Descobriu, então,
que a sombra o sustentava.
5
Era um homem cuja sombra o perfumava.
As pessoas dele se acercavam
mas não conseguiam
nele detectar
a flor exata.
Na verdade seu corpo
era um jardim.
Um jardim que caminhava.
6
Era um homem com uma sombra assassina.
Por isto aprisionou-a
na luz que a rodeava.
Era uma operação de alto risco
porque prisioneira
a sombra assassina
diariamente o assassinava.
9
Era um homem com uma sombra feminina.
Com ela se dava bem
– os outros é que estranhavam.
Olhado de perfil
parecia uno, duro, macho.
Mas nela cresciam seios
e era como se a sombra
à revelia do homem
– no escuro engravidasse.
Poemas que serão publicados no livro POESIA REUNIDA 3
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