Lirismo no Consultório

Christian Lynch, cientista político
“Uma parte de mim é multidão
Outra parte é estranheza e solidão
Uma parte de mim é permanente
Outra parte se sabe de repente”.
Ferreira Gullar
Requer o psicanalista, apático,
Que o paciente seja prático.
– Uma parte de mim é multidão
Outra parte é estranheza e solidão
Uma parte de mim é permanente
Outra parte se sabe de repente.
Pede analista, pelo paciente maçado,
Que este ponha o lirismo de lado.
– Uma parte de mim é amor
A outra, cautela e temor
Uma parte de mim é personalidade
Outra parte, reflexo da idade…
Conclui o analista, enfastiado,
– Seus problemas são artísticos
Lirismo exposto em dísticos
Chavões tirados da mala
Daqueles em paredes de sala.
Replica o analisado, exasperado,
– Como pode o senhor ser tão insensível?
Tanta rudeza é incompreensível!
Retruca o analista também,
– Você é normal, dois braços, duas pernas
Bom marido, ganha bem,
Por que gosta de viver às duras penas?
Será masoquista também?
– Não masoquista: artista!
O analista consultou seu relógio
E anunciou – Sua hora acabou.
Você porta a síndrome terrível
Das partes desgarradas
O que não é irreversível
Como fantasias mal-curadas.
Tenha pois juízo, menino
Que isto não é, de modo algum
Colóquio flácido para acalentar bovino.
Conduziu o paciente à saída.
– Tens alguma razão, sentiu
Mas uma morbidez assaz vil.
O analisado se despediu:
– Perdoe, doutor, a minha lida
Mas a vida anda tão dura
Que só lhe pago na próxima consulta.
Saiu. O psicanalista ficou sozinho, entregue ao seu próprio ser, a meditar sobre o que lhe haviam dito, as profundas verdades da existência humana. E concluiu:
– Uma parte dele é multidão
Outra parte é estranheza e solidão
Um parte dele é permanente
Outra parte se sabe de repente
Mas sem dúvida a pior das partes
É a que, não bastando ser permanente
Ainda tem a cara de pau
De sair inadimplente.
O autor é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (IESP-UERJ).
clynch3@hotmail.com